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“Conosco-ninguém-pode”: tóxica para o corpo, protetora da alma

Lucas Greenhalgh
23 de junho de 2021

Desde pequeno eu ficava admirado com as plantas que normalmente cresciam nos jardins do subúrbio carioca. Jardins que decoravam fachadas de casas, caracterizadas pelo seu estilo de inspiração colonial ou Art Déco característicos do século XX, harmonizando com imagens de santos e outras figuras religiosas em azulejos. Jardins que muitas vezes poderiam ser esplendorosos, ainda que ocupassem espaços diminutos do terreno suburbano originário da rápida urbanização da região. O paisagismo dos sucessores suburbanos de Burle-Marx incluía espécies ornamentais, aromáticas, medicinais e alimentares, misturando o belo ao funcional - cá estou eu mentalizando nostalgicamente as vezes em que o manacá floria em violeta e branco ou quando o pé-de-acerola e a goiabeira davam frutos e podíamos fazer suco com o que nosso jardim fornecia!


Dentro dos jardins, no entanto, não era difícil encontrar uma planta em específico: a comigo-ninguém-pode (Dieffenbachia spp., Araceae). A comigo-ninguém-pode é uma parte importante da mitologia do subúrbio: é uma planta bela, com folhas caracteristicamente desenhadas, se adaptando ao solo do jardim ou à terra de vasos de planta posicionados como guardas na frente das casas ou em cima dos muros. Não era comestível, muito pelo contrário! Uma das primeiras lições que eu devo ter ouvido quando criança é "fica longe dessa planta!".


Acontece que a comigo-ninguém-pode, ou seus outros nomes populares, como aningá-do-pará, bananeira-d'água, cana-de-imbé, cana-marona, cana-marrom ou cana-da-mudez, é uma das principais plantas tóxicas presentes em território nacional. O gênero Dieffenbachia, a qual pertence a principal espécie – D. seguine –, possui o que chamamos de "ráfides de oxalato de cálcio", que são estruturas cristalinas microscópicas formadas por agulhas de oxalato de cálcio. Essas ráfides de oxalato de cálcio estão presentes em toda a planta e, junto à atividade sensibilizante de saponinas, são capazes de causar danos severos aos tratos respiratório e digestivo quando ingerida. Devido ao doloroso dano na boca e esôfago, essa planta é chamada de "cana-da-mudez" na América do Norte e Caribe. Dados do SINITOX indicam que a Dieffenbachia spp. é uma das principais plantas associadas a casos de intoxicação em crianças e animais.


Apesar da sua toxicidade, existem relatos de uso medicinal para a Dieffenbachia spp. A tintura da Dieffenbachia é utilizada diluída contra o prurido (coceira), inclusive das partes genitais, como uma loção. O suco, retirado direto das folhas, já foi utilizado para tratar hidrocele (acúmulo de líquido na região escrotal) e hidropsia (acúmulo de líquido nos tecidos), além de já ter sido utilizado no tratamento da lepra. Outro uso tradicional é o uso da solução da tintura muito diluída em forma de gargarejo para o tratamento da angina. Ainda assim, o uso medicinal caseiro dessa planta não é recomendado, dado ao fato de que cerca de 2-4 gramas do suco são capazes de matar uma pessoa.


Mas claro, a comigo-ninguém-pode não é normalmente utilizada como uma planta medicinal. Essa planta cura e previne males mais profundos: os do espírito. A comigo-ninguém-pode é uma planta já conhecida dos rituais e práticas de religiões afrobrasileiras, como o candomblé e a umbanda. Essa planta oferece proteção à casa, contra o mau-olhado. É utilizada como ornamento, mas também pode ser utilizada em patuá, em banho ou em repelente. De fato, uma planta com propriedades tão agressivas fisicamente só poderia ser agressivamente protetora no mundo espiritual, fazendo juz ao seu nome: com ela, NINGUÉM pode.


A planta, no entanto, não é utilizada exclusivamente pelos praticantes da religião, sendo incorporada no conhecimento do dia a dia das pessoas, potencializando seu significado místico e simbólico. Em um local assolado pela precariedade decorrente da rápida urbanização e da exclusão da população marginalizada, historicamente abandonada pelo poder institucional e amarrada pela rotina exaustiva da sobrevivência, cresce nos jardins a comigo-ninguém-pode, resiliente guarda dos sonhos e protetora do trabalhador suburbano.

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