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Avanços na pesquisa em medicina canabinoide no Brasil

Camila R. Chaves
13 de maio de 2020
Revisão: Leopoldo C. Baratto e Virgínia M. Carvalho

Para falar sobre o tema Cannabis medicinal é preciso entender primeiro o que são os canabinoides e onde são encontrados. Existem duas categorias de canabinoides: os endógenos, que são produzidos pelo nosso corpo (endocanabinoides), e os exógenos, que podem ser adquiridos através do extrato da planta Cannabis sativa, conhecida popularmente como maconha e cânhamo. Os canabinoides são reconhecidos no organismo por dois tipos de receptores: CB1, que se encontra principalmente no sistema nervoso central nas regiões da amígdala e hipotálamo, e o CB2, presente no sistema nervoso periférico e no sistema imunológico. Podemos pensar nos receptores como fechaduras, que só conseguem ser abertas (ou no caso ativadas) por uma determinada chave que tem o formato certo para se encaixar nelas. As chaves no nosso caso são os canabinoides, que tem o formato certo para se encaixar nos receptores CB1 ou CB2 e ativá-los, gerando determinados efeitos no organismo.

Em função de seu efeito psicoativo, a maconha foi proibida em todo o Brasil em 1932 (Decreto nº 20.930) e em 1964 passou a fazer parte da Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto Nº 54.216), tornando o tráfico ilegal a única maneira de se obtê-la. A proibição, associada ao estigma social, dificultou bastante a condução de pesquisas científicas sobre as propriedades medicinais dos canabinoides nas últimas décadas. Porém, de 2014 em diante é possível observar um processo de flexibilização da abordagem proibitiva e punitiva da política de combate às drogas, possibilitando que grandes avanços no campo da medicina canabinoide fossem alcançados.


A primeira paciente a conseguir no Brasil autorização judicial para fazer o tratamento com óleo de Cannabis foi Anny Fisher, uma garotinha de 5 anos portadora da síndrome CDKL5, que apresentava crises de epilepsia persistentes. O tratamento foi um sucesso e acabou impulsionando as pesquisas sobre Cannabis no controle de crises convulsivas. Em seguida, outras histórias de sucesso começaram a aparecer, como o caso da Juliana Paolinelli, que utilizou terapia com óleo de Cannabis para dor neuropática, e Gilberto Castro, que a utilizou para o tratamento de esclerose múltipla. Hoje em dia estão surgindo cada vez mais evidências de que os canabinoides são realmente uma excelente alternativa para o tratamento dos quadros citados acima e também de outros, como glaucoma, transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e gliomas. Inclusive, no dia 22 de abril de 2020 a ANVISA autorizou o registro e comercialização de um medicamento a base de canabidiol, um dos principais canabinoides encontrados no óleo de Cannabis. Seria esse o começo de uma nova classe de medicamentos que irá revolucionar a medicina e melhorar bastante a qualidade de vida de diversas pessoas? Só o tempo e as pesquisas dirão, mas para pesquisar é preciso ter acesso legalizado ao extrato da planta e um sistema robusto de controle de qualidade.

Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) estão sendo conduzidas pesquisas de excelência sobre os efeitos benéficos dos canabinoides, como os trabalhos realizados pelo grupo do Laboratório de Neuroquímica do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho. Além de realizar pesquisas, eles também possuem um projeto de divulgação científica muito legal chamado Time Cannabis, que dissemina informações sérias e confiáveis sobre canabinoides nas mídias sociais, como Instagram e Facebook. O PlantaCiência entrou em contato com a equipe do projeto e eles nos concederam uma entrevista, que você confere abaixo.


O que é medicina canabinoide e quais são as principais pesquisas que estão sendo conduzidas pelo grupo atualmente?


A medicina canabinoide é o estudo biomédico e farmacológico do sistema endocanabinoide para fins terapêuticos. O entendimento do sistema endocabinoide, bem como das moléculas que regulam esse sistema, são pontos centrais e, nesse sentido, tem-se a compreensão da aplicação da planta Cannabis sp. ou seus derivados para o tratamento de doenças ou seus sintomas. O uso da Cannabis na medicina é milenar. A planta aparece descrita na primeira Farmacopeia Chinesa, com mais de 2.000 anos, sendo indicada para o tratamento de dores em geral, mas principalmente das articulações. Ao longo da história, muitos outros usos medicinais foram sendo relatados, como broncodilatador, controle de crises epilépticas, controle de ansiedade e insônia, entre outros. Nosso grupo, por ter base em Neurobiologia, atualmente foca nos efeitos celulares e moleculares que o uso do extrato proveniente da Cannabis sp. causa no Sistema Nervoso. Atualmente temos 4 projetos principais envolvendo diferentes patologias: dor neuropática, doença de Parkinson, transtorno do espectro autista (TEA) e epilepsia. Além disso, contamos com colaborações que investigam o efeito em outros sistemas, como o renal.


Como surgiu o interesse por essa linha de pesquisa?


O Time Cannabis surgiu de uma colaboração entre a Profa. Virgínia M. Carvalho e a Dra. Luzia Sampaio. A Dra. Virgínia é professora da Faculdade de Farmácia da UFRJ e coordenadora do projeto de extensão Farmacannabis, que presta orientação para pacientes e responsáveis com autorização para manufatura do extrato de artesanal ou importação de extratos industrializados. A Dra. Luzia é pós-doutoranda do Laboratório de Neuroquímica e tem quase 10 anos de experiência em trabalhos sobre o sistema endocanabinoide. Após a colaboração ser firmada, a Dra. Luzia convidou alguns integrantes do laboratório para fazer parte do projeto e sugerirem linhas de pesquisa que poderíamos seguir, surgindo, portanto, o Time Cannabis. Atualmente nosso time consiste em 3 pós-docs, 1 aluno de doutorado, 2 alunos de mestrado e 2 alunas de iniciação científica do Laboratório de Neuroquímica. Além disso, temos colaboração com colegas de outros laboratórios que expandem ainda mais nossos projetos.


A Anvisa aprovou agora em abril o registro e a comercialização no Brasil do primeiro medicamento a base de canabidiol. Você pode falar um pouco sobre o canabidiol e as principais diferenças entre ele e o THC?


A Cannabis apresenta uma enorme variedade de componentes, entre esses a classe dos canabinoides, que são mais de 100. O delta-9-tetraidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) são os principais canabinoides descritos na espécie e possuem efeitos terapêuticos importantes. O THC é a principal substância psicoativa, ou seja, responsável pela sensação de “barato” característica da Cannabis. Já o CBD, é totalmente isento de efeito psicoativo, mas é capaz de atuar no SNC também. Embora sejam moléculas com estruturas químicas semelhantes, elas são bem distintas quanto ao seu efeito farmacológico. O THC é um agonista dos receptores canabinoides, CB1 e CB2, sendo a sua ação sobre o CB1 responsável justamente pelo efeito psicoativo. Por sua vez, o CBD não é agonista nem antagonista desses receptores, mas apresenta ação biológica sobre outros alvos, que incluem os receptores TRPV1, TRPM8, GPR55 e PPARs, além de atuar sobre enzimas do sistema endocanabinoide, alterando assim a concentração dos canabinoides endógenos. Sobre suas ações farmacológicas, tem sido bem descrito o papel do CBD para o controle de convulsões, principalmente aquelas decorrentes  de epilepsias refratárias, como na Síndrome de Dravet, além de efeito ansiolítico importante, propriedades neuroprotetora e antioxidante, principalmente devido a uma ação direta sobre as mitocôndrias.


A pesquisa em medicina canabinoide tem avançado bastante nos últimos anos, mas imagino que ainda existam limitações e muito estigma sobre o tema. Quais são as maiores dificuldades que vocês enfrentam para trabalhar com no Brasil?


Acreditamos que as maiores dificuldades ainda são na questão de obtenção de material, seja droga vegetal, extratos ou canabinoides isolados, para condução das pesquisas. Apesar da autorização para realização de pesquisas com os compostos isolados ou, mais recentemente, com produtos finalizados, o acesso a esses insumos encontra uma série de barreiras burocráticas, além da planta continuar proscrita no Brasil, ou seja, proibida em território nacional. A situação melhorou nos últimos anos, mas ainda não chegou ao ideal. Muito tem se trabalhado e discutido nos últimos anos a fim de desmistificar o uso terapêutico da planta e de suas substâncias para promoção do bem estar de pacientes de diversas enfermidades. Contudo, médicos, pacientes e seus responsáveis ainda se sentem inseguros para abordar uma estratégia terapêutica com esses produtos, sobretudo ao considerarmos a pouca disponibilidade de fontes confiáveis e cientificamente embasadas. O nosso objetivo com esse projeto é justamente romper com essas duas dificuldades e aproximar o conhecimento científico da sociedade que anseia por respostas.


Por fim, tem algum material que vocês recomendam para quem tem interesse pelo assunto e deseja aprofundar seus conhecimentos?


Primeiramente, temos nossa página no Instagram, @timecannabis, onde regularmente postamos conteúdo original abordando temas relacionados à medicina canabinoide e à planta Cannabis sp., trazendo esses assuntos à discussão com embasamento no que há de mais recente sendo produzido na ciência mundial, com uma linguagem acessível e dinâmica. Também estamos sempre abertos para receber sugestões de temas para abordar em nossas postagens, estabelecendo uma ótima troca com nosso público. Uma outra ótima sugestão é a página no Facebook do Farmacannabis, uma plataforma gerenciada pela Profa. Virgínia M. Carvalho, na qual são trazidos diversos conteúdos informativos, desde dados de sua pesquisa com variedades de espécies de Cannabis sp. a indicações de documentários e filmes que discutem tais temas, aproximando de forma lúdica o público e a Academia.


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