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Confusões no dia a dia do Farmácia Viva: Espinheira-santa, espécies semelhantes e a contribuição definitiva da descrição botânica em nossa rotina

Ana Carla Prade
21 de abril de 2021

Planta medicinal símbolo de Santa Catarina, a Monteverdia ilicifolia (Mart. ex Reissek) Biral (Celastraceae), antigamente denominada Maytenus ilicifolia (Mart. ex Reissek), ou comumente chamada espinheira-santa, foi uma das espécies mais citadas em nosso levantamento etnobotânico municipal (aliás, este foi tema da minha primeira coluna aqui no PlantaCiência). São Bento de Sul, município do planalto norte catarinense, foi terra da etnia Xokleng e traz em sua medicina popular espécies utilizadas por estes e outros indígenas da região sul. A exemplo da Monteverdia, podemos citar a Schinus terebinthifolius (aroeira vermelha), a Casearia sylvestris (Guaçatonga) e a Bauhinia forficata (pata de vaca), entre muitas outras.


Esta espécie foi descrita pela primeira vez em 1725 e seu grande divulgador para o meio acadêmico e médico foi o Dr. Aluízio França, da Faculdade de Medicina do Paraná, que em 1922 relatou os seguintes usos tradicionais da espécie: “A Espinheira-santa é analgésica, tonificante, desinfetante e cicatrizante, nas gastralgias, acalma rapidamente a dor. Nas doenças lesionais do estômago – em especial a gastrite crônica e as ulcerosas, por exemplo – gasta o medicante um maior prazo nas preparações, mas a melhora pode-se sentir rapidamente. É tonificante, porque reintegra às suas funções o estomago dos dyspepticos, os hypotônicos e o intestino dos atônicos constipados. É, porém, cicatrizante, porque cicatriza as feridas. Desde a simples perturbação funcional às lesões das mucosas, o medicamento tem decidida ação curativa”. A Monteverdia está presente na 4ª e na 5ª edição da Farmacopeia Brasileira (FB) e em 2011 foi incluída no Formulário de Fitoterápicos da Farmacopeia Brasileira (FFFB, 1ª ed.) e no 1º Suplemento de 2018. A espinheira-santa também é uma das quatorze espécies medicinais que constam na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) e está também na lista de produtos tradicionais fitoterápicos de registro simplificado da RDC 26/2014. Em 2019 foi incluída na 6ª edição da Farmacopeia Brasileira e em 2020 na 2ª edição do Formulário de Fitoterápicos da Farmacopeia Brasileira.


Quando iniciamos a procura pelas espécies medicinais nativas aqui em São Bento do Sul visitei algumas propriedades na área rural a procura especificamente da espinheira-santa. Gentilmente uma das proprietárias me recebeu e ouviu a história da implantação do Farmácia Viva aqui no município. Da mesma forma que a maioria da comunidade sãobentense que acolheu nosso propósito, esta senhora imediatamente viu uma possibilidade de contribuição. Com todo carinho de quem abraça as causas comunitárias e ambientais, a dona do sítio me levou a um “pé de espinheira” que estava localizado em uma área privilegiada da propriedade. Pensei naquele momento que meu fornecimento para o Farmácia Viva estava garantido, já que ela estava falando de uma árvore que há anos convivia com a família. Mas ao chegar perto da espécie verifiquei que não se tratava da Monteverdia e sim da Ilex aquifolium, também chamada de azevinho, a conhecida árvore da guirlanda de Natal (para surpresa da minha anfitriã). Esta espécie, nativa do continente europeu, é uma espécie dioica (i.e. os sexos são separados havendo indivíduos masculinos e femininos), aparecendo os frutos, tóxicos, apenas nos exemplares femininos, sendo que 20 ou 30 bagas podem ser fatais, porém suas folhas apresentam também alguma toxicidade. Em minha pesquisa encontrei várias publicações portuguesas que referem tanto o uso popular do azevinho neste país como medicinal quanto informações sobre potencial toxicidade da espécie.


A espinheira-santa é uma das espécies medicinais mais adulteradas à venda no mercado de produtos naturais e fitoterápicos. São diversas espécies que podem ser confundidas com a Monteverdia. A adulteração pode ocorrer de várias formas, intencionalmente ou não: o produtor ou o revendedor adiciona partes da planta que não possuem atividade terapêutica ou mesmo outras espécies “parecidas” com a planta, para simplesmente aumentar a massa vegetal. Estas adulterações podem ocorrer por falta de conhecimento e capacitação dos produtores e extrativistas na identificação da planta. Na minha prática clínica, o momento em que me deparo com uma adulteração e consigo detectá-la, por conhecimento prático da espécie e por saber onde procurar a descrição botânica, é que entendo, na prática, o lugar da botânica em nossa rotina de trabalho. A Monteverdia é facilmente confundida com outras espécies que também apresentam folhas com margem espinescente. Os principais exemplos são Zollernia ilicifolia (Fabaceae) e Sorocea bonplandii (Moraceae), entre muitas outras.


Certa vez recebi um pacote de droga vegetal com a descrição de espinheira-santa, na época Maytenus ilicifolia, comprado em uma loja de produtos naturais. O produto estava rasurado grosseiramente e era possível visualizar alguns elementos estruturais das folhas. Imediatamente pela cor da droga vegetal, sua textura, o tipo de nervura e a forma como elas estavam dispostas perto dos acúleos, era bastante claro, para mim, que não se tratava de espinheira-santa, mas possivelmente da Sorocea bonplandii. Para exemplificar estas adulterações encontrei uma tese de mestrado realizada por aluna da Faculdade de Farmácia da UFSC em 2001 que, naquela época, cita a adulteração de amostras de fitoterápicos a base de espinheira-santa. Os marcadores químicos da Sorocea e da Zollernia estavam presentes em 8 das 10 amostras analisadas. Apenas duas amostras continham somente a Maytenus ilicifolia. A adulteração na esfera industrial amplifica a questão pois ao ocorrer neste âmbito percebemos lacunas graves em toda cadeia produtiva, que vão desde a identificação correta da espécie até ao controle de qualidade ineficiente, demonstrando que é um setor que necessita um olhar mais criterioso.


Nestes anos à frente do Programa de Fitoterapia de São Bento do Sul, algumas espécies chegaram às minhas mãos como “verdadeiras espinheiras-santas”. Posso citar com tranquilidade a Ilex aquifolium, a Pachystroma longifolium, Osmanthus heterophyllus, Berberis repens. Muitas delas foram identificadas apenas com auxílio de uma completa descrição botânica, uma vez que a semelhança com a Monteverdia era grande e aos olhos destreinados passariam facilmente por verdadeiras. Por estes e outros motivos oriento meus pacientes quando prescrevo a espinheira-santa e eles falam que possuem a espécie em casa (algo de certa forma comum em nossa região), que tragam um ramo para que eu possa identificar. E em caso de dúvida aciono um colega botânico como socorro. Em fitoterapia não existe “é parecido”, precisamos identificar com certeza o que indicaremos ao paciente.


A senhora que gentilmente me apresentou o primeiro exemplo prático de engano de espécies medicinais em minha carreira de fitoterapeuta ficará eternamente guardada em minha memória. Ela me ensinou o quanto o conhecimento e o estudo minucioso da botânica pode, entre tantas outras coisas, auxiliar pessoas como ela e eu, apaixonadas pela saúde e pelo uso das plantas medicinais. Também me ensinou que os enganos acontecem e que devem ser solucionados com carinho mesclado à ciência, para ganharmos espaço no coração e na vida destas pessoas e assim plantarmos a sementinha da importância do nosso trabalho. Com certeza ela vai olhar para sua linda árvore de azevinho e vai lembrar de mim, e, com certeza, vai multiplicar este conhecimento.

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