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O cachorro que comia plantas

Leopoldo C. Baratto
21 de outubro de 2019

Nós tínhamos uma cachorrinha que viveu lá em casa por 15 anos. Ela se chamava Jade. Sim, Jade, em alusão a protagonista da novela "O Clone" (“Inshalá!”) vivida por Giovanna Antonelli, em 2001, mesmo ano que adotamos ela. Era uma vira-latas, mistura de poodle com labrador. Uma prima dizia que era "o cachorro mais feio do mundo", mas nós a amávamos mesmo assim. Fiel e alerta que só, vivia solta pelo quintal. Qualquer estranho que passasse perto do portão, ela latia. Tanto que não tínhamos campainha no portão de entrada da casa. No nosso jardim tinha uma jabuticabeira, uma romãzeira, uma goiabeira, diversas flores e arbustos, orquídeas, tudo por causa do dedo verde de minha mãe. Havia também uma amoreira (Morus nigra, Moraceae), daquela que tingia os dedos e a língua de um violeta intenso, culpa das antocianinas, substâncias fenólicas que dão cor azul a roxo e vermelho aos frutos e flores. Várias vezes observei Jade comendo grama e folhas de amoreira. Isso mesmo, comendo as folhas, mastigando com vontade. Achava curioso aquilo: onde já se viu cachorro comer planta? Anos mais tarde me deparei com um ramo da ciência que é a Etologia e logo depois a Zoofarmacognosia. Assim comecei a compreender o comportamento de Jade. A Etologia é a ciência que estuda o comportamento dos animais no seu habitat. A Farmacognosia é a ciência que estuda a origem do conhecimento a respeito dos fármacos, que foram em sua grande parte as plantas. A  Zoofarmacognosia, por sua vez, pode ser classificada como o ramo que estuda as substâncias ou produtos de origem animal que podem ter efeito terapêutico (mel, própolis, almíscar, toxinas de serpentes e aracnídeos, etc.) ou o uso que os animais fazem das plantas para tratar suas enfermidades, como se fizessem uma “automedicação fitoterápica”. A observação desse comportamento animal pelos humanos pode levar à descoberta de recursos terapêuticos. Um exemplo é o uso do óleo de copaíba como cicatrizante pelos índios da Amazônia; o conhecimento a respeito destas propriedades surgiu  através da observação de animais feridos que se esfregavam no tronco das copaibeiras, liberando o óleo, e pouco tempo depois suas feridas estavam cicatrizadas. Na África, primatas comem determinadas plantas para expulsar vermes intestinais e tratar problemas digestivos. Estes primatas engolem folhas inteiras e ocorre um mecanismo de expulsão do vermes de forma física. Os orangotangos da ilha de Bornéu, na Ásia, mascam folhas da espécie Dracaena cantleyi (Asparagaceae) devido às suas propriedades anti-inflamatórias. Chimpanzés na África mascam a medula da raiz de Vernonia amygdalina (Asteraceae), de sabor extremamente amargo, para fins medicinais; os nativos da região a usam para eliminar parasitas intestinais, tratar diarreia e problemas de estômago. A espécie apresenta lactonas sesquiterpênicas com conhecia ação anti-helmíntica. Elefantes em Laos comem certas raízes para combater diarreia, entre elas de espécies como Harrisonia perforata (Rutaceae), Castanopsis indica (Fagaceae) e Terminalia mucronata (Combretaceae), plantas estas usadas pelos nativos para as mesmas situações. Os elefantes também usam Tinospora crispa (Menispermaceae) quando estão "tristes", condição interpretada como febre pelos nativos, que a usam para esta finalidade. Algumas plantas são usadas pelas elefantes fêmeas no período ante- e pós-parto, assim como durante a gravidez. O mais curioso de tudo isso é que os animais não consomem estas plantas de forma aleatória: eles sabem exatamente para quê elas servem e onde encontrá-las. Esse conhecimento demonstra uma noção de localização geográfica e conhecimento adquirido sobre essas espécies, através de observação ou aprendizado de mãe para filho. Impressionante notar que chimpanzés possuem conhecimento botânico ao selecionar as plantas corretas para seu auto-tratamento, quando e quanto comer, a parte da planta que deve ser usadas e muitas vezes como preparar a ingestão. Os arqueólogos afirmam que em torno de 25 a 41% das espécies vegetais usadas como medicinais pelos primatas hoje em dia (algo em torno de 200 espécies) já eram usadas pelos últimos ancestrais comuns do homem, que foram primatas que deram origem ao homem moderno e viveram há 6 milhões de anos atrás. Portanto, os animais usam as plantas para tratar seus problemas de saúde e detêm um conhecimento específico sobre essas plantas. A observação desse comportamento animal pode guiar os cientistas a pesquisar estas plantas e descobrir quais são as moléculas responsáveis pelo efeito terapêutico. Jade morreu há 3 anos, deixando saudades lá em casa. Depois dela, não tivemos mais cães, somente gatos, sendo que alguns deles também comem plantas pelo quintal. E no fim das contas tivemos que instalar uma campainha no portão de entrada!

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