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Viagem ao Alto Rio Solimões: uso de plantas medicinais nas Aldeyas Belém do Solimões e Umariaçú

Gilberto C. Oliveira
19 de dezembro de 2023

“A natureza é nosso bem comum. Temos de voltar a ela e desenvolver processos acessíveis a todos. É dessa forma que fazemos mudanças: pelo conhecimento.”

Ailton Krenak


No mês de setembro realizei uma viagem ao noroeste amazônico onde tive a oportunidade de conhecer e descrever as atividades realizadas pelo Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Solimões (DSEI-ARS). A sede está localizada no município de Tabatinga, Amazonas, na margem esquerda do rio Solimões, e na fronteira com o Peru e a Colômbia. O DSEI-ARS atende cerca de 7 etnias indígenas, sendo essas os Tikuna, Kokama, Kaixana, Kanamari, Witoto, Kambeba e MakuYuhup. Ao total são cerca de 240 aldeyas atendidas, comportando populações que somam 70.371 indígenas, sendo que Tabatinga é o segundo município do Brasil com a maior população indígena na região.


Ao longo do trabalho tive a oportunidade de visitar duas terras indígenas, demarcadas na década de 90, a Aldeia Belém do Solimões e Aldeia Umariaçú, ambas compostas em sua maioria por Tikunas. Com a oportunidade das visitas, pude realizar visitas domiciliares aos indígenas, que são referências no uso e manejo de plantas nessas aldeyas, e uma roda de conversa de troca de saberes de plantas medicinais entre parteiras e pajés.


De imediato é possível reconhecer algumas semelhanças do campo prático com diversos trabalhos etnobotânicos já publicados, pois a maioria das pessoas que são referências no uso de plantas ainda são mulheres entre 30-40 anos e que transmitem o conhecimento através da oralidade. Os pajés ainda são posições majoritariamente ocupadas por homens e que estabelecem diálogos com as parteiras para o exercício da medicina popular. A tradicionalidade medicinal desses povos ainda são recursos disponíveis para tratar doenças do trato gastrointestinal, sistema nervoso, sistema tegumentar e outros, além do tratamento de doenças de cunho espiritual.


Na aldeya Belém do Solimões me deparei com histórias como a de Júlia Tikuna, agente de saúde indígena há mais de 16 anos e que em breve será técnica de enfermagem, nasceu na aldeia Belém e permanece ali com sua família. Júlia dedicou um tempo para me ensinar algumas plantas medicinais e como prepará-las; conta que sua avó reunia todas as mulheres em roda, e apresentava as plantas. Tem um jardim só de encantarias. Também conheci o pajé Seu João Tikuna, o qual hoje prefere ser nomeado de rezador apenas, nomenclatura mais adequada de acordo com sua crença religiosa. Seu João também me mostrou seu jardim de plantas medicinais, de fácil acesso no terreno de sua casa; uma de suas frases em nossa conversa foi “as coisas tem sido estranhas”, apontando o rio secando ferozmente e os conhecimentos tradicionais que parecem não estar mais acompanhando as novas gerações de Belém do Solimões.


Ao longo das outras semanas conheci a aldeya Umariaçú, que se divide em I e II. Pude reunir cerca de 10 indígenas parteiras e pajés para conversarmos sobre esses trabalhos em saúde que são importantes para o fortalecimento da saúde indígena, do SUS e das próprias identidades culturais do território. Essa roda de conversa foi contemplada com as parteiras contando suas histórias desde o primeiro parto que realizaram, os métodos usados e as plantas que acompanham. Ainda houve espaço para Dona Nhairurenã Tikuna desabafar as necessidades e indignações das parteiras frente à falta de respaldo do Estado para conseguirem algum recurso financeiro, ferramentas e utensílios para operacionalizar os partos nas aldeias, e o reconhecimento delas também como responsáveis pelo cuidado.


É emocionante observar a circulação dos conhecimentos tradicionais pelo Alto Rio Solimões, e entender que são conhecimentos ancestrais, e ao mesmo tempo políticos, visto que manejam e estabelecem modos de vida nesse território, onde ainda faltam equipamentos culturais, de educação e de saúde. Os detentores desses saberes se mostram ainda confiantes e dispostos a repassar o conhecimento para os mais novos, esses ainda são tímidos quando convocados. Esses conhecimentos são um trunfo capaz de suspender os céus que estão despencando por conta das mudanças climáticas. Essa viagem foi especial para minha formação enquanto profissional de saúde, pesquisador e ser humano. Venho aqui narrar essa trajetória para fortalecer uma esperança em lutar pelo que se acredita e pelo que existe, pelo que permanece há mais de 500 anos.

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