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A Farmacopeia Ayurvédica: as plantas medicinais e a individualidade dos tratamentos

Nina C. Barboza da Silva
27 de agosto de 2020

O uso das plantas medicinais remonta à história da humanidade. Para se ter uma ideia, os homens das cavernas, na era paleolítica, já se valiam das propriedades terapêuticasda flora ao seu redor. No entanto, os registros escritos mais antigos do uso das plantas vêm da Índia, do conjunto de livros dos Vedas, em particular do Rig Veda e do Athava Veda. Nos Vedas também encontramos os primeiros registros relacionados ao Ayurveda, que posteriormente viria a ser conceituado e sistematizado como sistema médico a partir do trabalho de Charaka (cerca de 900 a.C.) e outros sábios na época conhecida como período dos Samhitas. Além dos registros relacionados especificamente ao Ayurveda, existe um livro chamado Hortus Malabaricus escrito no século XVII por H. A. Van Rheede. Trata-se de um registro etnobotânico do conhecimento de quatro especialistas da época e traz 780 plantas, suas propriedades medicinais, formas de preparo, nomes em latim, árabe e também em malayalam e nagari, línguas locais na Índia. Com toda essa história oral registrada em diferentes textos antigos que sobreviveram ao tempo e chegaram até os nossos dias, sabemos que existem cerca de 1250 plantas medicinais usadas em preparações no Ayurveda e outras medicinas tradicionais indianas.


Atualmente, a Farmacopeia Ayurvédica da Índia conta com 519 drogas simples descritas e cerca de 202 formulações diferentes envolvendo plantas medicinais, algumas envolvendo mais de 40 plantas diferentes numa única formulação. Quando acessamos as monografias, vemos que, mesmo incluindo parâmetros internacionalmente aceitos como referência para o controle de qualidade das drogas, constam classificações particulares de como o Ayurveda classifica as suas drogas (dravyas) e suas qualidades. O conhecimento sobre as plantas medicinais no Ayurveda é bastante profundo e considera todos os aspectos de como a erva é colhida, preparada e utilizada. Todas são classificadas de acordo com suas propriedades (gunas), sabor (rasa), potência (virya), efeito após a metabolização (vipaka) e qualidade única (prabhava). A indicação de uso medicinal das plantas é dada a partir do entendimento desses atributos, seus efeitos nos doshas e, consequentemente, sobre a origem das doenças.


Assim como a Ciência contemporânea mostra que diferentes fatores podem interferir na produção dos bioativos produzidos pelas plantas (por exemplo temperatura, luminosidade, interação com outras plantas ou insetos etc.), este conhecimento também está presente no Ayurveda. Plantas colhidas em diferentes épocas do ano apresentam atributos diferentes: aquelas que crescem em clima seco terão propriedades diferentes da mesma planta cultivada em ambiente úmido; como tudo que existe é constituído por 5 elementos, os “Panchamahabhutas” (terra, fogo, água, ar e éter), as plantas também são influenciadas de acordo com a predominância destes nos locais/épocas onde são cultivadas e colhidas. Assim, uma planta vai apresentar o melhor do seu efeito terapêutico quando sua potência é aumentada através da coleta no local apropriado (Deshasampat), na estação apropriada (Kalasampat), quando estão enriquecidas de seus atributos (Gunasampat) e são armazenadas de forma adequada (Bhajanasampat).


Sabemos também que não adianta usar a planta certa de forma errada, correto? Dependendo das características dos bioativos responsáveis pela ação farmacológica, devemos escolher a forma adequada de extração, através do modo de preparo mais apropriado, e ainda optar por administrá-la corretamente. Esta mesma lógica é descrita e empregada no Ayurveda. Mesmo uma planta no seu estado ótimo de potência tem sua resposta terapêutica influenciada pelo método de preparo (falamos sobre eles na coluna do mês passado), o líquido usado na administração (veículo) e a via de administração. Existem vários veículos (anupanas) descritos na literatura, mas os mais utilizados são  a água, o mel, o leite e o ghee (manteiga clarificada). Uma mesma droga com anupanas diferentes atua em tecidos corporais diferentes, existindo drogas que precisam de anupanas específicos para que determinada propriedade medicinal seja obtida. Ou seja: muda o anupana, muda o efeito.


Imagino que a esta altura do texto você já deva estar pensando o quão confuso parece o uso de plantas no Ayurveda. Eu lhe digo que não é confuso, mas sim complexo! Afinal estamos falando de uma racionalidade que leva em consideração as características particulares de cada pessoa (prakriti), sua condição (vikriti) avaliada sob diferentes aspectos, e propõe a individualidade do tratamento. O Ayurveda é um sistema médico tradicional que já se baseava na personalização muito antes do surgimento do conceito moderno de “medicina personalizada” ou “medicina de precisão”. Se você já ouviu falar e até já viu alguma propaganda anunciando essa “novidade” - a medicina personalizada, saiba que ela tem por objetivo a customização do tratamento de acordo com as características biológicas dos indivíduos ou subgrupos específicos, prometendo oferecer o medicamento preciso, na dose exata e no momento certo, pressupondo também uma transformação na postura do paciente que deve se tornar mais proativo, contribuindo com a geração e interpretação de seus próprios dados sobre seu estado de saúde. Isso se assemelha em muito com a proposta do Ayurveda, não?


Portanto, aquela planta maravilhosa para quando eu tenho dor de cabeça pode não ser a melhor para você, pois a “sua” dor de cabeça pode não ter a mesma origem que a minha, seu estado de desequilíbrio pode não ter as mesmas características que o meu e assim é sempre preciso ter um olhar cuidadoso para o uso das plantas medicinais. Claro que as propriedades das plantas podem ser aplicadas a grupos de doenças, permitindo seu uso de forma ampla pela população, desde que esse uso não seja banalizado, sem a leitura criteriosa dos sinais e sintomas relacionados aos problemas de saúde. Até porque vale sempre lembrar que o Ayurveda foca na prevenção, na adoção de hábitos que visam minimizar os desequilíbrios dos indivíduos e assim evitar que as doenças se instalem. Logo, não adianta “enfiar o pé na jaca” diariamente esperando que uma planta ayurvédica milagrosa resolva os problemas.


Charaka diz que a característica dos melhores medicamentos está em suas potencialidades curativas e que estes devem possuir as propriedades necessárias para a realização dos principais objetivos da Ayurveda, ou seja, prolongar a vida e promover a saúde perfeita.

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