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As mulheres à frente do milho, da artemisinina e do Prêmio Nobel

Fernanda Mariath
03 de junho de 2020
Revisão: Leopoldo C. Baratto

Em meio a uma pandemia, enquanto vivemos o distanciamento social imposto pela quarentena, um dos pensamentos mais presentes em minha cabeça durante o dia (e a noite!) é: “não estou sendo produtiva”. E por mais que eu me preocupe com isso, alguns dias é difícil levantar do sofá e de fato fazer algo produtivo. Nesses dias de puro “ócio”, eu procuro o meu refúgio mais antigo: os livros. Afinal, eu já peguei um longo trem com a Anna Kariênina e já aprendi muitos feitiços com a Hermione, tudo de pijama debaixo das cobertas.


Atualmente, minha companhia tem sido a Sharon McGrayne com o seu livro maravilhoso “Mulheres que ganharam o Prêmio Nobel em Ciências”. Nele, ela conta a trajetória de 15 mulheres que foram simplesmente brilhantes e desafiaram todos os obstáculos para se tornarem cientistas incríveis – algumas laureadas com o Nobel e outras que participaram de pesquisas de descobertas laureadas. O Prêmio Nobel surgiu em 1895, quando em seu testamento, Alfred Nobel deixou grande parte de sua fortuna para uma série de prêmios: Física, Química, Fisiologia ou Medicina, Literatura e Paz. A ideia é que fossem premiados os maiores benefícios para a humanidade, reconhecendo essas descobertas e cientistas. Em 1968, o Sveriges Riksbank (Banco Central da Suíça) cria o prêmio de Ciências Econômicas em memória a Alfred Nobel, totalizando as 6 categorias do Prêmio Nobel que temos atualmente.


No ano de 2019, em todas essas categorias, os 11 laureados foram homens. O que me chamou bastante a atenção, afinal, feminismo e mulheres na Ciência tem sido um tema tão atual. Há uma preocupação contínua em resgatar mulheres que foram apagadas na história da Ciência e valorizar mulheres que não tiveram reconhecimento proporcional as suas contribuições. E não só passado, como também presente. Tem se incentivado mulheres a serem cientistas e as pessoas querem ouvir histórias e trajetórias dessas mulheres. Além disso, tem se incentivado meninas a se apaixonarem por Ciência e a sonharem em ser pesquisadoras. Então, em um momento que mulheres na Ciência é um tópico tão presente, tão discutido e tão importante, chega a ser decepcionante todos os laureados serem homens.


Decepcionada, decidi procurar mais sobre o Prêmio. Descobri que entre 1901 (primeira premiação) a 2019, foram 597 prêmios, 950 laureados (27 organizações), 927 ganhadores. Desses, 54 vezes foram para mulheres, ou seja, 5,74% dos laureados são mulheres. O que é uma representatividade assustadoramente pequena, considerando que as mulheres são metade da população. É importante ressaltar que são 53 mulheres laureadas, porque a Marie Sklodowska Curie, além de ser a primeira mulher a ganhar o Nobel, ganhou duas vezes, um em Física em 1903 e outro em Química em 1911. A Curie foi a primeira pessoa a ganhar dois Prêmios Nobel e a única até hoje a ganhar dois prêmios em duas categorias diferentes em Ciência – os outros que foram laureados mais de uma vez foram Linus Pauling em Química e Paz, John Bardeen ambos em Física e Frederick Sanger ambos em Química. Outra característica que chama atenção no prêmio da Marie Curie é o ano, 1903. Apenas dois anos após a primeira premiação, não demorou muito tempo para uma mulher ser reconhecida pelo comitê do Nobel, o que torna ainda mais intrigante serem tão poucas laureadas.


Mas o que isso tudo tem a ver com milho, artemisinina e Nobel, que estão lá no título, e até agora só falei sobre a terceira palavra. Onde estão as outras duas? O milho e a artemisinina, na realidade, se referem a duas cientistas laureadas: Barbara McClintock e Tu Youyou.


A Barbara McClintock foi laureada em Medicina ou Fisiologia em 1983, sendo a terceira mulher a ganhar nessa categoria. Foram 110 prêmios a 219 laureados, sendo 12 mulheres, portanto, 5,47%. McClintock foi laureada por sua descoberta dos elementos genéticos móveis. Ela provou que elementos genéticos podem mudar de posição no cromossomo, tornando genes próximos ativos ou inativos.  Ela estudava características genéticas no milho (Zea mays). Nasceu em 16 de junho de 1902 e entrou no mundo da pesquisa e da Ciência aproximadamente em 1920. Nessa época, nos Estados Unidos (ela é americana), 30 a 40% dos graduandos eram mulheres. No entanto, elas eram apenas 12% dos cientistas e engenheiros com PhD e apenas 4% dos pesquisadores empregados. Assim, mesmo que já tivesse um maior acesso à educação em Ciência nos EUA, o acesso ao mercado de trabalho de pesquisa era muito pequeno.  Apesar desse grande empecilho, McClintock construiu uma trajetória acadêmica brilhante. Ela observou que a variedade das cores e na aparência do milho eram resultado de alterações nos genes. Ela conseguiu mapear os dez cromossomos do milho e percebeu que era possível diferenciá-los no microscópico por pequenas alterações, extensões e constrições. Ela localizou a posição dos genes nesses cromossomos e começou a fazer paralelos entre mudanças genéticas e mudanças na aparência, sendo as primeiras evidências relacionando a variedade de formas biológicas com variações no cromossomo.


No entanto, poucos em Cornell – onde pesquisava na época -  entendiam e apreciavam seu trabalho. Até a chegada de Marcus Rhoades, que ficou impressionado com a sua pesquisa e, finalmente atraiu a atenção devida. Assim, McClintock tornou-se líder de um grupo de professores e PhDs – mesmo sem ter um PhD ainda! É importante ressaltar que, além de todas as barreiras que as mulheres enfrentavam para se tornar pesquisadoras, elas ainda eram excluídas das colaborações, que são alavancas muito importantes na descoberta científica. Porém, mesmo nesse novo panorama, Barbara McClintock continuou sem possibilidade de emprego permanente. Devido à falta de perspectivas futuras, Barbara McClintock saiu de Cornell e foi para Cold Spring Harbor, onde ficou anos trabalhando com pesquisa de elementos genéticos móveis. Em 1953, ela organizou todo o trabalho e publicou. Geneticistas que trabalhavam com milho entenderam e aceitaram bem seu trabalho, ela foi bem reconhecida e valorizada na época. No entanto, ela queria que a comunidade científica entendesse que o trabalho dela era muito importante e com impacto além da genética do milho, mas só três cientistas fora da sua área pediram seu artigo. Ela teve a impressão que publicar foi perda de tempo, inclusive tem uma fala dela no livro da Sharon McGrayne que ela ficou chocada quando percebeu que não a entendiam e não a levavam a sério, mas isso não a aborreceu, porque ela simplesmente sabia que estava certa. Esse reconhecimento pela comunidade científica só aconteceu após 1960, quando outros cientistas descobriram esses elementos transponíveis em bactérias e diversos organismos, evidenciando a importância do trabalho dela.


Em 1983, em 10 de outubro, ela escuta no rádio que ganhou o Prêmio Nobel e o comitê do Nobel a descreve como uma das duas grandes descobertas do nosso tempo em genética, sendo a outra, a estrutura do DNA – uma descoberta que só foi possível devido aos experimentos (roubados!) da Rosalind Franklin. O que torna ainda mais intrigante a baixíssima representatividade feminina nos laureados do Nobel, afinal, se as duas maiores descobertas em genéticas do nosso tempo tiveram contribuição feminina, era de se esperar que, pelo menos, em Medicina ou Fisiologia se tivesse bem mais do que apenas 12 laureadas entre os 219. É impressionante que o Prêmio Nobel na categoria Medicina ou Fisiologia geralmente é dado para fins medicinais ou biologia animal e a Barbara McClintock é uma das únicas pesquisadoras que ganhou com estudo com plantas. Ela venceu por ter ficado claro que as implicações do seu trabalho eram além da Botânica. Outra característica importante de seu prêmio é que ela o ganhou sozinha, sendo o único prêmio - nessa categoria - exclusivamente feminino.


Outra pesquisa laureada pelo Nobel em Medicina ou Fisiologia com estudo com plantas é a da Tu Youyou. Ela é a primeira mulher da China a ganhar o Nobel. Seu prêmio em 2015 é pela sua descoberta de uma nova terapia contra a malária. Ela estudava plantas da Medicina Tradicional Chinesa e conseguiu isolar a artemisinina da planta Artemisia annua. A artemisinina é até hoje um dos tratamentos de referência contra malária pela Organização Mundial da Saúde. A trajetória da Tu Youyou na Ciência foi motivada por ela ter tido aos 16 anos tuberculose, o que a fez parar de estudar por dois anos para fazer o tratamento em casa. Depois disso, ela decidiu pesquisar na área médica para aprender a se manter saudável e ajudar outros pacientes, por isso, decidiu estudar Farmácia. É importante fazer um recorte para a Tu Youyou assim como eu fiz para a Barbara McClintock: um artigo da Nature sobre disparidade de gênero na ciência mostra que a autoria de mulheres em artigos chineses em 2013 é de 26%. Então, mesmo que a pesquisa da Tu Youyou tenha sido anos depois da pesquisa da Barbara McClintock, é possível perceber que o espaço das mulheres na Ciência ainda não está tão consolidado.


Ainda há muitos obstáculos e dificuldades na trajetória das mulheres cientistas. Antes da quarentena, eu tive uma aula em que um professor fez um panorama da história da Biotecnologia e Genética e nenhuma mulher foi citada, apenas homens – lembra que as duas maiores descobertas da Genética do nosso tempo tiveram contribuições de mulheres? Mas mesmo assim, infelizmente, elas não estão na maior parte dos livros didáticos e nem nas salas de aula. Também não estão nos nomes dos institutos de pesquisa, nem nos cargos mais altos, nem nos artigos publicados com maiores citações e, muito menos, no Prêmio Nobel. Mas é importante continuar lutando, pesquisando, valorizando e discutindo a importância de mulheres na Ciência e em todos os outros campos. Muitas conquistas foram realizadas e muitas ainda estão por vir. Uma esperança é pensar que o Prêmio Nobel não reflete necessariamente as descobertas que estão sendo realizadas agora, o prêmio em Medicina ou Fisiologia de 2019, por exemplo, foi para uma pesquisa da década de 1990. Então, quem sabe, daqui a alguns anos o perfil dos laureados seja diferente, tendo sim muitas mulheres presentes nos laureados com o Nobel. Afinal, lugar de mulher é onde ela quiser.

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